Texto produzido para a Jornalismo Júnior, empresa júnior de jornalismo vinculada à ECA-USP. Publicação original aqui.
‘Bob Marley: One Love’ é uma cinebiografia que abala expectativas
Na contramão da estrutura usual, o filme de Reinaldo Marcus Green mostra que é possível humanizar um herói e celebrar sua vida sem retratá-la por inteiro.
No mês em que Robert Nesta Marley completaria 79 anos, chega às telas dos cinemas a biografia do artista que mudou a história da música e tornou o Reggae um fenômeno mundial. Bob Marley: One Love (2023) conta a trajetória do cantor durante um período conturbado da política jamaicana, quando o país estava dividido e tomado pela violência, cenário que também propiciou uma tentativa de assassinato contra Marley.
O filme inicia mostrando a insistência de Bob Marley em realizar seu show no festival Smile Jamaica, desaconselhado por todos ao seu redor em função do contexto político do país. A disputa agressiva entre os partidos rivais era contraposta pelas mensagens de paz da música Reggae, da qual Bob era o principal expoente. Isso atraía atenção negativa para o cantor por parte dos envolvidos no conflito, o que resultou, poucos dias antes do festival, no atentado contra sua vida.
O recorte da vida, entre 1976 e 1978, segundo o diretor Reinaldo Marcus Green, foi um período de tempo que pareceu muito rico para capturar quem era Bob, suas turbulências e dificuldades pessoais. “É claro que há flashes da sua vida no passado que ajudam a consolidar esses momentos, mas esse período pareceu o que melhor demonstrava quem ele era enquanto homem, marido, pai e músico” disse Reinaldo em coletiva de imprensa na qual a Jornalismo Júnior esteve presente.
Apesar da janela de tempo abranger duas experiências relacionadas à morte — a tentativa de seu assassinato e a descoberta do câncer que o matou em 1981 — a nuance mórbida foi pouco explorada, pois tornaria a biografia mais sombria, o que não era a intenção do diretor.
“Queríamos fazer um filme que fosse uma celebração de sua vida"
Reinaldo Marcus Green
Ao escolher não fazer um filme que vai da origem ao auge da carreira do artista, o diretor foge de uma estrutura que já é quase regra em cinebiografias de ícones da música, como Elvis (2022) e Bohemian Rhapsody (2018). A decisão por esse caminho frustra expectativas de quem vai ao cinema esperando ver a infância e adolescência de Bob Marley, ou como o cantor iniciou a jornada musical, ainda que existam trechos sobre esses períodos. No entanto, o longa surpreende ao focar mais na construção de sua personalidade, de forma que os conflitos permitem entender como o jamaicano se tornou o fenômeno que é, sem que fosse necessário ilustrar isso de forma explícita.
A escolha do ator se mostra como um dos grandes acertos da obra. Kingsley Ben-Adir, que já interpretou Malcolm X no longa Uma Noite em Miami (One Night in Miami, 2020) e recentemente um dos Ken’s de Barbie (2023), faz sua estreia como protagonista nas telas do cinema, já que Uma Noite em Miami foi lançado apenas para o streaming. Em coletiva de imprensa, o Cinéfilos questionou o ator sobre já ter interpretado esse outro líder negro de relevância mundial. Kingsley respondeu que sem dúvidas isso o ajudou, porém deixou claro que todo trabalho o ensina algo novo, sem fazer distinção entre seus demais papéis.
“Em toda experiência de atuação você cresce de alguma forma e aprende algo novo sobre o ofício ou sobre você mesmo”
Kingsley Ben-Adir
Durante a coletiva, o ator revelou que a preparação para interpretar Bob Marley envolveu aulas de violão, canto e a convivência com pessoas que o conheciam para além dos palcos e entrevistas, como amigos de infância e familiares. Além da atuação, toda a caracterização também ajuda a criar uma reprodução muito crível de Bob, o que impressiona já que Kingsley tem características físicas pouco semelhantes às do cantor.
Houve também uma preocupação com a questão linguística. O patois jamaicano — língua mais falada no país — reproduzido pelo ator não é um simples inglês com sotaque. As falas capturam gírias, estruturas gramaticais e até mesmo elementos religiosos, como o uso de “Eu e Eu”, flexão pronominal típica do vocabulário Rastafari, cujo significado é explicado em uma cena.
A religião Rastafari desempenha um papel crucial na história e a relevância dada à fé na narrativa é outro grande acerto da direção. Alguns momentos do filme mostram um lado mais humano, impulsivo e até agressivo de Bob Marley, que destoa de forma discrepante do tom leve, amoroso e pacífico dado ao personagem na maior parte do longa. No entanto, trechos que reforçam sua relação com a fé Rastafari ajudam a compreender essas idas e vindas como um processo constante do artista lutando contra si mesmo e se reconectando com a espiritualidade. O que parece uma transição brusca e surreal de humor na verdade é uma manifestação da impressionante, mas real, excepcionalidade de Marley que gera frutos até hoje, a exemplo do próprio filme.
Bob Marley: One Love é o que se propõe a ser: uma fração da vida de Bob Marley que exemplifica sua vida mais do que a retrata. Não se pode esperar que 107 minutos sejam capazes de contemplar tudo sobre um ícone mundial que tem impactos mais longevos que seus próprios 36 anos de vida. A direção do filme tem consciência dessa limitação e escolhe abraçá-la. O resultado é uma obra que respeita o legado do artista e ajuda a introduzir as novas gerações à figura de Bob, sem pretensão de cobrir sua vida na íntegra.